Análise de tweets retrata mapa semântico e de atores do debate sobre suicídio de Karol Eller
31 de outubro de 2023
por Luara Gagliardi
Dando continuidade aos testes que temos feito no LABIC, nos últimos dias analisamos os comentários do público sobre o suicídio da youtuber Karol Eller. Um mês antes de sua morte, ela declarou que renunciara à homossexualidade em nome da religião, o que resultou numa ampla discussão nas redes acerca da suposta submissão de Karol a sessões da chamada “cura gay”.
Os grafos aqui postados são resultado da análise de mais de 17 mil comentários do Twitter sobre a morte da youtuber. O primeiro mostra a rede de atores que tiveram mais visibilidade no debate. O maior nó é o do deputado Nikolas Ferreira, amigo de Karol, que publicou uma confirmação lamentando o acontecimento horas depois.
A massiva maioria dos outros nós relevantes é de ativistas de esquerda, que consideram o procedimento de “cura gay”, pelo qual a youtuber teria passado, como engatilhador de seu suicídio. Porém, vemos ainda a presença de perfis noticiosos, onde os internautas manifestaram suas opiniões.
No segundo grafo, temos a rede semântica do debate. O cluster rosa, o maior do grafo, traz a discussão sobre a terapia de conversão e sua influência na morte de Karol.
A palavra “igreja” no centro da conversa mostra que seus atores vêem a instituição em papel de responsabilidade. Em palavras como “culpa”, “vítima”, “matou”, “cura” e “gay” têm-se a condenação da religião que teria submetido Karol a um “tratamento” agressivo e violento, levando-a ao suicídio.
Já palavras como “depressão”, “pressão” e “política” sugerem a condenação de um movimento opressor de longo prazo, constituído não por um evento, e sim por uma vida inteira de micro agressões e marginalização cometidas pela própria comunidade que Karol frequentava.
Na parte de baixo do grafo, o cluster azul claro é formado por religiosos que prestam condolências. Palavras como “misericórdia”, “conforte” “amor” e “piedade” mostram que a tonalidade do discurso desse grupo não é de condenação, e sim de solidariedade e até tristeza. Os usuários desejam que Deus tenha misericórdia do espírito de Karol e conforte seus entes queridos, prezando por seu bem estar de acordo com suas crenças.
O discurso piedoso do cluster azul, entretanto, não contesta a premissa – já viral no Twitter – de que a youtuber era parte de uma comunidade que considerava sua existência pecaminosa. Ao contrário, os nós do cluster a reforçam ao pedir por “piedade” e “misericórdia” por sua alma, mostrando que, mesmo entre aqueles que a acolhiam, havia o consenso de que ela necessitava de expiação.
O cluster verde, ao lado do azul, é uma clara ilustração do embate ideológico que permeia o suicídio de Karol. “Jesus”, “Bíblia” e “pecado” são alguns dos termos chave que nele constam. Todavia, seu significado é objeto de disputa entre os dois grupos centrais da discussão:
Além do grupo que acredita que a não aceitação da identidade de Karol a conduziu ao suicídio, disputando estes termos há também o subgrupo da comunidade cristã que usa palavras como “escolheu”, “pecado” e “mudar” para comentar as falhas cometidas por Karol como religiosa, seja por ser lésbica, seja por ter se suicidado.
Embora também tenha atores cristãos, no cluster verde sua manifestação é menos solidária que no cluster azul; associada a termos como “comportamento” e “problema”, o discurso tende a culpabilização e condenação e deixa implícita a ideia de que Karol precisava “parar de ser gay”.
A HOMOSSEXUALIDADE COMO CONFIGURAÇÃO DO “OUTRO”
O processo de patologização da homossexualidade começa em meio ao processo de patologização das dissidências sexuais em geral. A partir da popularização da ideia de um instinto central, emergente em meados do século XIX, qualquer desvio deste (e da heterosexualidade ou da sexualidade padrão) passa a significar promiscuidade e perversão.
Assim, a homossexualidade passa a ser pensada como congênita e associada a todo o tipo de desvio sexual, como a masturbação para as mulheres e mesmo a pedofilia no caso dos homens. Os métodos de reversão sexual (ou “cura gay”) começam a se desenvolver e popularizar na década de 1960, e variavam:
Havia estímulos preventivos à religião e à moral, drogas que causavam náuseas e choques elétricos ou injeções de água/gelo nos órgãos sexuais com estímulos associados ao mesmo sexo e masturbação ou outros estímulos positivos associados ao sexo oposto, além de outros tipos de tortura.
A partir de 1976, começam a surgir as chamadas “terapias de conversão”: grupos religiosos que misturavam “tratamentos” (como exorcismos) com grupos de apoio e psicoterapias. As denúncias de violações de direitos humanos nestes grupos eram constantes, e, no Brasil, eles foram proibidos pelo CFP 01/1999.
A proibição, entretanto, não extinguiu o debate. Apesar de o oferecimento deste tipo de serviço não ser mais permitido, os recursos judiciais contra a resolução argumentam que é direito do paciente, ou de sua família, quando menor, buscar a reorientação ou tratamento que ache apropriado.
Entre 2000 e 2019, as taxas de suicídio nas Américas cresceram 17% enquanto, no resto do mundo, caíram 36%. Dados da OMS estimam que mais de 700 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano, e esta é a quarta maior causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos.
Uma pesquisa usando o levantamento feito pelo NSDUH nos EUA concluiu que o risco de suicídio é de três a seis vezes maior para pessoas gays, lésbicas ou bissexuais que para heterossexuais. No Brasil, o CFP declara como um fator de risco do suicídio a “vivência de afetos intoleráveis, como desamparo, […] abandono e vergonha”.
Mesmo que a “cura gay” não possa ser vendida em frascos nas farmácias, a ideia da cura gay permanece presente no imaginário coletivo de milhares de membros da comunidade LGBTQIAPN+ que são constantemente confrontados pela ubiquidade de valores segundo os quais sua existência é pecaminosa.
Karol Eller, uma lésbica assumida e uma cristã fervorosa, carregava consigo uma dualidade ímpar e um estigma constante. Sua preocupação, em uma das últimas manifestações que fez antes de morrer, foi a de se livrar, finalmente, de sua tarja de pecadora, mesmo que para isso tivesse de renunciar a um aspecto vital de sua existência.
O fato de ela ter se suicidado um mês depois foi o que chamou a atenção dos internautas. E, vinte e quatro anos após a publicação da CPF 01/99, tornou-se viral a discussão sobre a crueldade e violência das terapias de conversão.
É necessário assinalar, entretanto, que as terapias de conversão são apenas uma forma mais agressiva e direta de uma violência quase onipresente. A mensagem da patologização da homossexualidade é passada constantemente em forma de agressões sutis e ideologias veladas. Nem as terapias de conversão nem o suicídio de Karol Eller se deram no vácuo.
O estudo que avalia comparativamente o risco de suicídio entre indivíduos heterossexuais ou LGBTQIAPN+ pode ser acessado em https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/Comportamento/noticia/2021/11/suicidio-entre-gays-lesbicas-e-bissexuais-pesquisa-analisa-papel-de-fatores-como-genero-raca-e-idade.html
As informações sobre a evolução da patologização da homossexualidade e das terapias de conversão foram retiradas do artigo ““Terapias de conversão”: Histórico da (des)patologização das homossexualidades e embates jurídicos contemporâneos” e pode ser acessado em https://www.scielo.br/j/pcp/a/zksLGXhzsLFVppDN5SvgYXP/
A vivência de afetos intoleráveis é declarada um fator de risco do suicídio pelo CFP no livro Suicídio e os desafios para a psicologia, e os dados numéricos anuais de suicídio foram tirados do site da OMS https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/suicide. os dados que apresentam contraste entre as taxas de suicídio nas Américas e no restante do mundo foram retiradas do site do ministério da saúde, no link https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/setembro/anualmente-mais-de-700-mil-pessoas-cometem-suicidio-segundo-oms
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