Uma contextualização do Circuito Fora do Eixo

14 de março de 2011

por Labic


Já que o site do Labic está entrando na ativa aos poucos, não custa explicar:  vamos abastecê-lo praticamente todos os dias com textos ligados às temáticas de cada uma de nossas pesquisas. Os temas são variados, mas direta ou indiretamente ligados à cultura, internet, redes sociais, biopolítica, contrapoder e por aí vai.

Meu estudo tem como foco o Circuito Fora do Eixo e sua produção cultural. Para introduzir, optei por postar um vídeo e uma entrevista, ambos retirados da mesma conversa que as equipes do Coletivo Multi  (me incluindo!) e do Século Diário tivemos com o vice-presidente da Abrafin (Associação Brasileira de Festivais Independentes), Pablo Capilé.

Capilé é uma das figuras mais importantes nesse momento de construção da cena independente por todo o Brasil.

Videocast: Pablo Capilé from Blog Garganta on Vimeo.

“Independente é autonomia”

Henrique Alves e Carolina Ruas

Ninguém vende mais um milhão de discos. Ninguém lota mais ginásios. Não existem mais olheiros contratados pelas gravadoras para descobrir os novos talentos do rock’n roll. O mercado musical brasileiro teria falido? Não é preciso muitos cliques pela internet para entender que, o que está falindo é, na verdade, o antigo modelo de gestão da indústria fonográfica. Quebrada sim, mas que em seu lugar abre espaço para a nova era da música independente que aparece no embalo de bandas como Macaco Bong, Teatro Mágico, Móveis Coloniais de Acaju, entre outras pautadas pelo público das redes.

Obedecendo à lógica dos coletivos culturais, o Espírito Santo juntou-se recentemente ao Circuito Fora do Eixo, movimento cultural independente que parte de Cuiabá para demais capitais fora dos grandes centros de circulação cultural do país, como Recife, Belém e Rio Branco. Em Vitória, os debates promovidos pela Noite Fora do Eixo – evento, ocorrido nos dias 13, 14 e 15 de maio, quemarcou a entrada do ES no Circuito Fora do Eixo – trouxeram para a discussão Pablo Capilé, uma das figuras mais importantes para esse momento de construção da cena independente por todo país.

Vice-presidente da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin), um dos idealizadores do Circuito Fora do Eixo e membro-fundador do Instituo Cubo em Cuiabá, Capilé fala, nesta extensa entrevista ao Caderno A, sobre a nova configuração da cena musical brasileira, em que as novidades do mundo da música surgem às margens do sistema, em circuitos independentes baseados em modelos de autogestão que obrigam, artistas e produtores, a trabalharem efetivamente para contornar as mutações do mercado cultural.

Por um motivo especial, essa entrevista, realizada na última quinta-feira (13), vem em boa hora. Tudo porque, na última segunda-feira (17), a coluna de Álvaro Pereira Jr. no caderno Folhateen (Folha de S. Paulo) provocou discussões acaloradas no mundo virtual. Intitulada Se o governo cismar, o indie acaba no Brasil, ela questiona de forma contundente se é legítimo o investimento de recursos públicos nos festivais indies brasileiros. Ou seja: nesse debate, meio sem querer, estamos aqui oferecendo o(s) outro(s) lado(s) da questão.

Caderno A – Observando a relação dos festivais independentes na página da Abrafin nota-se que os eles estão, em sua maioria, localizados fora do Centro-Sul do país, fora do eixão Rio-São Paulo, enquanto os “grandes” festivais localizam-se justamente nessa região. Isso é mero acaso?

Pablo Capilé – Não, velho. Eu acho que os festivais independentes têm uma estrutura que se aproxima do que é o Primeiro Setor, que é o poder público. Quem investe nesses festivais independentes geralmente é o poder público; quem investe nesses festivais institucionais é a iniciativa privada. A iniciativa privada concentra recurso no “eixão”. O poder público é mais inteligente e tem mais mobilidade “fora do eixo”. Portanto, os festivais independentes, na grande maioria das vezes, se for pegar financiamento, o fora do eixo é público e no “eixão” é privado. E como no “eixão” é privado, geralmente quem dita as normas desses festivais é geralmente quem financia. Então você tem o Planeta Terra, o Tim Festival, o Free Jazz,Skol Beats. São festivais institucionais, que não têm nada a ver com o conceito da Abrafin e que não estariam dentro. E os festivais independentes a gente coloca que é independente porque são feitos independentes de qualquer coisa, é o que a gente brinca. Na verdade independência é autonomia: você pode ter o poder público investindo, mas ele não dá pitaco em como o festival deve ser feito. Agora o Terra dá pitaco no Planeta Terra, a Tim dá pitaco no Tim Festival. Então isso que caracteriza a diferença de um festival independente para um que não o é.

Muita gente fica batendo na tecla: “Ah, como que o festival que tem o apoio da Petrobrás é independente?”.  Se formos discutir a questão semântica de “independente” a gente vai longe. Mas para nós da Abrafin, independente é autonomia: se ninguém dá pitaco no que você está fazendo, você tem autonomia e então ele é independente. Se tem uma outra estrutura que se ela sair você não faz mais o festival… Por exemplo: a Tim ano passado não patrocinou o Tim Festival e ele não aconteceu. Se a Petrobrás não patrocinar o Calango ele continua acontecendo. Então, essa relação do produtor com o poder público, ela é mais estratégica, e até inteligente, fora do eixo. Até porque dentro do eixo, no Rio, por exemplo, você vai fazer um festival independente. E, lá, com quem você vai concorrer? Com a Susana Vieira… Você vai concorrer com a Globo. Então é mais difícil para um produtor independente captar um projeto sendo que a Globo está captando um projeto. Em São Paulo é a mesma coisa. Você tem lá a Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo]: como que o Forgotten Boys vai conseguir aprovar um projeto com uma Osesp na disputa? Como que um cara do festival independente vai conseguir aprovar um projeto se o Planeta Tera absorve a história toda?

E o outro argumento é que: as grandes cidades já são um grande festival. Se você pegar a programação da semana doStudio SP, é uma programação que faz uma de um festival independente de Cuiabá não ser tão interessante em São Paulo. São bandas que sempre estarão tocando por lá. Então para eles concentrarem aquelas bandas num fim de semana, talvez não haja interesse do público paulistano em assisti-la porque elas estão tocando lá de forma picada. Todo mundo passa por ali. Em Cuiabá, não. Talvez seja aquele primeiro momento em que as bandas vão tocar. Em Vitória também, a primeira vez que a banda vai tocar.

Em São Paulo elas estão tocando sempre. E no Rio… o Rio é o Rio, né, velho? Agora é que está rolando uma retomada do movimento independente no Rio porque lá a proximidade da Globo é muito foda, né? Aquele lance da cultura do VIP. O que acontece?  Você tem uma Globo do lado da sua casa. Você pode pegar o carro e tentar a sorte grande lá. O cara de Cuiabá não vai tentar a sorte grande no Projac. Mas o cara que tem uma banda ou um produtor de festival, na Barra da Tijuca, com o Projac a 40 minutos dele, ele vai tentar conhecer alguém, que pode conhecer o Mariozinho Rocha, que pode emplacar uma música numa trilha de novela… Então, no Rio, ele vai ficar nessa luta. E São Paulo é a capital da circulação dessa música no Brasil.

Então para mim principalmente é isso. E Belo Horizonte está mais fora do eixo do que eixão. As bandas quase não tocam lá e por isso que existem festivais independentes legais em BH.

Caderno A – A questão do pagamento dos cachês às bandas, que foi colocada no debate e sobre a qual você também falou em entrevista ao site O Inimigo. Queria que você destacasse como está essa discussão dos cachês das bandas dentro da Abrafin.

PC – Cara, a Abrafin defende o pagamento e a remuneração de todos os artistas. A Abrafin entende que cada festival tem autonomia para lidar com seu conceito e sua estrutura da forma como bem entender. Sete festivais da Abrafin têm apoio do Governo Federal, quarenta festivais não têm. Esses sete festivais oferecem toda a estrutura que o edital solicita. Os outros negociam com as bandas nos termos que acreditam serem termos saudáveis e as bandas aceitam ou não aceitam tocar.

Então, o que eu acredito nessa história toda é que existem plataformas e existem artistas querendo utilizá-la. E dentro desse “querer utilizar” o combinado não é caro.  Se existir pactuação do artista com o festival, essa pactuação tem que ser respeitada. Festival que tem dinheiro público tem que remunerar; festival que não tem dinheiro público escolhe a forma de fazer o que acha mais cômodo, conveniente, estruturalmente mais viável, conceitualmente mais interessante.

Então a minha opinião como vice-presidente da Abrafin é, obviamente, que todas as bandas têm que receber. Só que eu acredito que remuneração não é só espécie. Para mim cachê não é só grana. Existem mil formas de remunerar o artista. Só que se o artista entende que a remuneração por parte de determinado festival é bacana, ele topa; se não entende, ele não topa.

Mas a Abrafin não tem posição homogênea nesse sentido porque tem mil festivais. A posição da Abrafin é: todos os agentes dessa cadeia produtiva tem que ser remunerados. E essa remuneração é acordada pelo agente e pelo organizador do festival. Não dá pro festival explorar o artista e não dá para o artista só usar o festival de trampolim. Isso acordado, de uma maneira saudável, para nós, está no jogo.

Caderno A – A gente vê que a história da música independente, especialmente nos anos 90, coloca as gravadoras independentes como complementares às grandes gravadoras: a independente revela o artista, ele se destaca e aí a grande vai lá, pega e o faz explodir. Essa modelo de relação entre gravadoras independentes e grandes gravadora é assim, ainda hoje?

PC – Eu acho que não existe mais essa relação. Acho que no rock, ou na cena alternativa, na MPB, na música instrumental, na cena indie e ET Cetera, essa alternativa não condiz mais com a realidade. Quem é que estoura hoje? Quem estoura hoje é o Victor & Leo, é o Edson & Hudson. A Pitty foi a última que estourou. O que tem hoje? Hoje a tem o Teatro Mágico, que utiliza as mídias sociais para construir um público em torno de um conceito, mais do que só música, é um conceito que está sendo trabalhado. Existe também as bandas “coloridas”, que trabalham a mesma coisa: um conceito. Um Cine, um Restart, saca?, é banda que trabalhou fortemente nas mídias sociais, foi construindo um público de nicho, pegou a rebarba do Rick Bonadio, com o NXZeroCPM 22Fresno, etc. Mas fora esse nicho emo, não existe mais essa relação de “pequena gravadora lança, a grande pega”. Até porque não foi assim também com os emos. Com os emos, ele se autoproduziram, empreenderam e tinha um cara visualizando aquele nicho, que era o Bonadio, que pegou e começou a produzir.

Para mim a grande gravadora hoje é a rede em si. Por exemplo, o tecnobrega do Pará, é um puta exemplo de autogestão. Você pega o próprio Teatro Mágico, o Móveis Coloniais de Acaju, o próprio Macaco Bong… O Macaco Bong nunca vai ter cinco mil pessoas de público. Eles vão ter 400, 500 pessoas, mas dentro do que eles encaram como sucesso, aquelas 500 pessoas são sucesso para eles e eles estão muito satisfeitos em ter 500 pessoas no Brasil inteiro.

Então eu acho que, nessa pergunta específica do pequeno selo e da grande gravadora, a relação mudou. Não tem mais um pequeno selo que lança e a grande gravadora vem lá e abocanha. Até porque ela não tem nenhuma musculatura, ela não consegue ter grana para pagar o jabá e bombar aquele artista. Hoje com a queda da venda de CD’s, ela não tem como oxigenar aquele sistema anterior: ela pegava o artista, metia na trilha da Globo, pagava um jabá, bombava esse artista e ele ia lotar show.

Uma Maria Gadú, por exemplo, ela não vai colocar três ou quatro mil pessoas num show nunca mais. Coloca 500. Se for só show dela, dá 700, 800 pessoas. Mas duas mil? Ela já fez show aqui? Uma Pitty não está dando mais duas, três mil pessoas. O Charlie Brown Jr. não dá mais isso, O Rappa não dá isso sozinho, o Pato Fu não dá mais isso sozinho. Parece que dá porque eles tocam em Feira Agropecuária, porque toca em festival de não sei aonde. Agora, fazer um show só deles… saca?  Não tem mais banda de rock que leva 5 mil, 10 mil pessoas pra um show. Quem leva 10 mil pessoas é Ivete SangaloCláudia LeitteCalypsoAviões do Forró. Se você pegar Calipso e Aviões do Forró também é uma outra estrutura de autoprodução, de terminar o show e ter um computador gravando CD e entregando para o público.

E a galera fala assim “Mallu Magalhães é fenômeno de Internet”. Não é fenômeno de Internet. Fenômeno de Internet é o Fantasmão, o pagode de Salvador que tem cinco milhões de views.  A Mallu Magalhães tem 500, 600 mil e cresceu no mesmo modelo anterior: um monte de jornalista bombando, Faustão, Altas Horas, campanha de telefonia de celular. Agora oFantasmão, que ninguém sabe quem é e tem cinco milhões de views, esse sim é um fenômeno da Internet. Então são essas as variáveis, eu acredito.

Caderno A – Qual o relacionamento hoje entre entidades como, por exemplo, a Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD) e Associação Brasileira da Música Independente (ABMI)? Em suma: qual o relacionamento entre essas entidades que representam segmentos distintos no mercado da música?

PC – A Rede Música Brasil hoje tenta conectar essas linguagens “verticais” com as “horizontais”, que é essa linguagem, “Quero ir embora”, “Não agüento essa juventude” que é o que a ABPD pensa, né? [Nota do editor: no momento em que Capilé respondia a questão, subitamente uma funcionária da universidade entra e interrompe a entrevista. Motivo: por causa do horário, teria que fechar o recinto em que a conversa se realizava]. Mas, hoje, a ABPD, que era antes a associação brasileira das majors, hoje é a Associação Brasileira dos Produtores de Disco. Numa perspectiva de que antes as majors eram a “solução para todos os problemas”. Hoje elas são só complementares.

Então, na Rede Música Brasil, esse diálogo é muito forte: é um ambiente suprapartidário, é um movimento social sem natureza jurídica, que a ABPD, a ABMI, Abrafin, o Fora do Eixo, a Cufa [Central Única das Favelas], o MPB [Música Para Baixar], a Abeart [Associação Brasileira dos Empresários Artísticos], Abem [Associação Brasileira dos Editores de Música], Aber [Associação Brasileira de Editoras Reunidas], e todas essas entidades que trabalham com música no Brasil sentam e debatem a construção de editais, a organização da Feira Música Brasil, o papel do Ministério da Cultura, o papel das secretarias estaduais, o papel das secretarias municipais.

Então hoje a gente conseguiu trabalhar em conjunto para que a Rede Música Brasil fosse esse ambiente que favorecesse esse diálogo.

Caderno A – Observando o cenário atual, podemos interpretar que hoje só fazer música não basta. As bandas e os artistas estão assimilando bem essa dimensão “política” do circuito?

PC – Cara, eu acho que, primeiro, hoje basta só fazer música. Depende de onde o sujeito quer chegar. Se ele quiser tocar pra cinco pessoas, ele não precisa fazer mais muita coisa, não. Quando eu falo que não basta, nego fala que “Ah, mas tem mil modelos, mil possibilidades”. Mas tem mesmo. Se você quiser tocar pra 500, 600 pessoas não dá para você só fazer música. Não vai ter mais um olheiro que vai te catapultar. Mas se quiser tocar para os amigos, faça sua música, vira funcionário público, para você trabalhar de manhã e de tarde com alguma coisa que pague suas contas e à noite o seu hobby é ter uma banda.

Eu acredito que, para o que a gente tinha há cinco anos, que era um preconceito com essa relação entre música e política, a gente avançou muito. Não diria que a gente tem a consciência plena por parte dos artistas do que está acontecendo, mas a gente avançou bastante. Muitos artistas hoje já têm clareza do seu papel e do seu tamanho. Já estão confortáveis com esse novo momento, já entendem que eles não vão mais estourar e vender milhões. Entendem que se eles não se autoproduzirem, eles não vão aumentar seu lastro de público, não vão conseguir sair da sua cena local. Entendem que se eles não participarem de um fórum de cultura local, talvez ela não interfira no debate de para onde as verbas vão ser distribuídas. Se ele não ler modelos de gerenciamento de carreira, talvez ele fique para trás.

Então, acho que essa consciência política tem avançado muito. E a galera está mais consciente da importância de seguir a canção mas carregar a caixa. E isso me deixa bastante estimulado, porque tem se multiplicado de uma maneira muito rápida O Brasil inteiro hoje tem esse discurso do “Artista Igual Pedreiro” como discurso central: ou para bater e criticar, ou para absorver e fazer. Do mesmo jeito que o Cachê, a Abrafin, o Fora do Eixo, essa discussão do “Artista Igual Pedreiro” está no cerne dos debates. Se você olhar, hoje as principais discussões do mundo da música estão em torno de: Abrafin, Fora do Eixo, Artista Igual Pedreiro e Cachê. Uma parte é década de 80 pra caramba, que não quer facilitar a entrada do novo e outra parte falando “caramba, isso tudo é o que a música brasileira precisava”. Mas só de ter essa polarização já é uma característica clara de que politicamente o cenário avançou demais, porque antes as pessoas nem evidenciariam essas opiniões.

E hoje, tendo essa polarização, que eu acho supersaudável – eu vou defender que nós somos bons com unhas e dentes, mas eles também defendem que eles são os bons. Então, dentro disso, a gente consegue construir muitas pontes legais. Isso pra mim demonstra o tanto que a gente já avançou. Não está ainda no ideal, mas espero que a gente não chegue no ideal nunca. Para mim, o mercado é mutante. E se a gente chegar a uma definição de que a coisa se estabeleceu, a agente virou o establishment, e aí virar establishment é virar o que a gente contesta. E se a gente virar o que a gente contesta, vão ter que vir outros pra derrubar esses alicerces do establishment que é o que a gente está tentando fazer agora.

Fontes:

www.coletivomulti.org

www.seculodiario.com

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