Monitoramento identifica narrativas sobre a lobotomia na plataforma do TikTok
13 de dezembro de 2023
por Alice Souza Raimondi
No último mês, a equipe LABIC iniciou o processo de coleta de dados na plataforma TikTok. A partir da aplicação de novas funcionalidades no software Ford – principal ferramenta de extração utilizada pelo laboratório – a visualização da relação entre hashtags utilizadas conjuntamente tornou-se possível. Basicamente, nosso interesse foi manejar a conexão entre as hashtags postadas na descrição dos vídeos. Quando um usuário publica um vídeo, é comum rotulá-lo utilizando várias etiquetas. O Ford funciona criando uma matriz com os pares de hashtags presentes num post. E, assim, com esses pares conectados, post a post, podemos visualizá-la em software como o Gephi. A amostra, todavia, necessita que o post contenha, no mínimo, duas hashtags para que as conexões semânticas possam ser visualizadas.
Para testar essa metodologia, utilizamos como objeto de estudo a palavra lobotomia. A lobotomia é um procedimento psicocirúrgico que ganhou notoriedade na primeira metade do século XX, quando as opções de tratamento para doenças mentais eram limitadas. A operação cirúrgica envolvia a desconexão das vias que ligam os lobos frontais ao tálamo e outras vias frontais associadas, por meio de incisões no crânio, seguidas pela manipulação do tecido cerebral. No entanto, a lobotomia logo se tornou controversa devido aos efeitos colaterais irreversíveis e devastadores, como alterações de personalidade, perda de iniciativa e até mesmo a morte de pacientes. Atualmente, o procedimento é pouco realizado pela comunidade médica e não consiste em crime, mas vem crescendo no imaginário popular, principalmente das gerações mais jovens, como alternativa para curar patologias como esquizofrenia, depressão ou transtorno bipolar. Ao explorar o uso da hashtag lobotomia, buscamos enriquecer nossa compreensão sobre os diferentes significados que o termo passou a representar.
Para isso, foi realizada a coleta de 444 vídeos com a hashtag “lobotomy”, objetivando a análise dos vínculos que os usuários do TikTok constroem entre hashtags distintas. A hashtag foi coletada em inglês ao invés de português por uma série de fatores. A primeira delas é que a palavra lobotomia tem a mesma grafia em português, espanhol, catalão, italiano, russo (quando usado o alfabeto latino), entre outras línguas, dificultando o processo de análise, uma vez que os clusters passam a agruparem-se por nacionalidade e não por produção de sentido (esse processo será resolvido com o tempo, quando o script dar ao usuário a possibilidade de escolher o idioma que busca analisar). Outro motivo é a maior visualidade que a hashtag “lobotomy” recebe na plataforma, comprovado pela comparação dos vídeos mais visualizados das duas coletas (a coleta da hashtag lobotomia tendo 367 vídeos). Com o termo “lobotomy”, o vídeo mais visualizado era de cunho humorístico, com 12,7 milhões de visualizações. Já com o termo “lobotomia”, o vídeo mais visualizado – também de cunho humorístico, mas direcionado para o público hispânico – tem 5,2 milhões de visualizações, ou seja, menos da metade das visualizações do primeiro. A publicação que ocupa o segundo lugar, todavia, é um vídeo informativo em português, com 4,4 milhões de visualizações, demonstrando a vantagem das publicações humorísticas no Tiktok sobre as publicações de outras naturezas.
Gráfico comparando os dois primeiros vídeos mais visualizados de cada coleta
Assim, mesmo coletada em inglês, a hashtag “lobotomy” recebe grande atenção do público juvenil brasileiro, que tende a engajar mais do que produzir conteúdos humorísticos sobre a lobotomia – transformando a hashtag “lobotomia” (em português) em um espaço mais informativo do que memético.
Para estrear os estudos no aplicativo de vídeos, foi necessário, portanto, observar as diferentes narrativas sobre lobotomia que predominam por lá. Uma tendência preocupante encontrada na plataforma TikTok é a banalização e sucessiva humorização de temáticas relacionadas à saúde mental, que vão desde discursos autodepreciativos até menções sobre o desejo de realizar psicocirurgias, em especial a lobotomia. “Eu preciso que um desses seja feito em mim, de verdade #lobotomy #aesthetic #kawai”, diz a legenda de um post com ilustrações de lobotomias, seguido de comentários como: “Meu próximo piercing <3” e “Vou testar e já volto”. Ainda que envolto de ironia, tais discursos demonstram a crescente relativização que assuntos conexos à saúde pública vêm sofrendo pelos internautas.
Grafo de relações entre as hashtags e produção de sentido de cada cluster
O grafo acima, produzido pelo laboratório, revela que as hashtags se organizam em grupos de afinidade. Cada cor no grafo revela um desses grupos. Essa conectividade preferencial se traduz em 27 subgrupos. Cada um expressa um sentido da viralização sobre lobotomia no TikTok. Denominamos os 6 maiores clusters dentre os 27. O primeiro denominamos de “shitcluster”, uma vez que agrupa hashtags que marcam o gênero shitpost – termo que refere-se a postagens sem contexto aparente, de humor agressivo, nonsense, irônico ou troll de baixa qualidade, em sua maioria referenciando a cultura pop. Nesse agrupamentos, encontramos posts que fazem afirmativas aleatórias como “Eu sou uma guitarra”, “somente em Ohio” ou “jogi joga joge jogi joga joge” (comentários de um post com 27,5 mil likes). As relações das hashtags desse cluster com a lobotomia são majoritariamente algorítmicas – sem muitas referências ao contexto histórico ou às cirurgias em si. O segundo denominamos de “estetizador”, por agrupar lobotomy com termos como: lobotomycore, chic, fastfashion, corecore, gymmotivation e influencer. Aqui se vê vídeos que contém argumentos como “Eu sou lobotomy chic de verdade”, “Imagine uma dona de casa lobotomizada. Bem feminino, mas também desconcertante” “Quando você realiza uma lobotomia, mas continua fofa”. O terceiro e o quarto clusters foram denominados respectivamente de “capcut” e “slideshow”, por estarem agrupados devido ao seu formato específico, ao invés de um conteúdo em comum. Assim, cada formato oportuniza novas maneiras de engajar narrativas já presentes nos outros clusters – mais tangível quando comparado linguagens presentes em um post no formato de capcut (cortes rápidos, efeitos de edição, entre outros) das de um post no formato de slideshow (ilustrações meméticas, colagens e carroséis, característicos de plataformas de texto e imagens). O quinto denominamos de “esquizocluster”, em vista do excessivo uso do prefixo “schizo” encontrado em nós como schizoposting e schizotok. Evidenciam-se vídeos contendo frases como “Eu quando ainda escuto as vozes depois da lobotomia”, fazendo referência a sintomas de esquizofrenia. O sexto denominamos de “memético”, por agrupar palavras-chave como: meme, funny e relatable. Neles, é comum encontrar sintagmas como “live, laugh, lobotomy”, (algo como “viva, ria, lobotomia”), “Eu depois da lobotomia” e “Muito eu”.
Cluster estetizador: a atratividade no desconcertante
Sabendo da potência das hashtags para a viralização e da lógica algorítmica do TikTok, os produtores de conteúdo de entretenimento transformaram os discursos sobre lobotomia em uma estética, perceptível pelo nó lobotomycore do cluster bege, visto que é o maior nó associado à hashtag lobotomy. O sufixo “core”, em inglês, é utilizado para a construção de estéticas que visam representar a ideia central do prefixo da palavra. Logo, lobotomycore é uma estética centralizada na dessensibilidade, indiferença e alienação – em vista das principais sequelas dos pacientes após o procedimento cirúrgico. O uso do sufixo core para nomear estéticas é bastante observado na plataforma, designando a derivação de gêneros como em hardcore (gênero de punk rock mais intenso e rápido), em cottagecore (gênero estético que exalta um estilo de vida simples, especificamente no interior) ou em weirdcore (estilo de arte e moda que incorpora elementos surrealistas com mangá e arte psicodélica). Embora essa tendência pareça inofensiva, a transformação de temáticas da saúde mental em categorias estéticas ou gêneros de entretenimento é preocupante.
Cluster memético: nem o céu é o limite para o humor
O cluster roxo escancara a associação com a produção de humor, tendo a presença de termos como “meme”, “joke”, “humor”, “funny”, “hoodmemes”, “hoodironymemes”, “humorous”, “funnyvideos”; ao mesmo tempo que expressa a intenção dos usuários em viralizar esse tipo de conteúdo com os termos “trend”, “trending”, “relatable”. Essa intenção também é exposta em diversos clusters com as inúmeras formas de nomear a página principal do TikTok: no cluster vermelho a hashtag “fyp”, no amarelo “fy”, no verde “foryou”, no azul “foryoupage” e no laranja “fypシ”. Importante destacar o fenômeno dos hood memes ou hood irony memes, como um gênero de memes que marca uma evolução da categoria shitposting. Essa categoria de memes satiriza a cultura “gangsta”, e começou a aparecer no TikTok como Hood Lobotomy, que engloba vídeos com ícones visuais como notificações do botão “inscrever-se” do YouTube, silhuetas de tela verde, e outras figuras irônicas de baixa qualidade.
Schizocluster: do âmbito da saúde para um território recreativo
O cluster azul também chama atenção por associar termos como “divertido”, “goofy” e “engraçado” com “schizophrenic”. Além disso, a presença de nós como “meafterlobotomy”, “schizoposting” e “schizotok”, torna evidente a crescente banalização que essas temáticas vêm sofrendo, uma vez que passaram a ser replicadas como conteúdos que visam o relatable, ou seja, a identificação do receptor com a mensagem.
Em vista disso, existe um risco potencial de que a exposição frequente a esse tipo de conteúdo possa fortalecer informações imprecisas e prejudiciais à saúde pública, principalmente em vista da faixa etária da grande maioria dos usuários da plataforma, que têm entre 16 e 24 anos, segundo o próprio TikTok, além de ser a principal rede social dos usuários de internet entre 9 e 17 anos, segundo o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br).
Diante da relevância do assunto, do impacto na juventude brasileira e da escassez de estudos sobre a memetização da lobotomia, outras análises estão sendo elaboradas pelo laboratório para a melhor compreensão do fenômeno global.
Grafo da relação entre usuário e hashtag da coleta com o termo “lobotomy”
A próxima etapa de monitoramento da hashtag lobotomy gira em torno dos principais criadores desse tipo de conteúdo. As estratégias de engajamento serão traçadas através da análise das associações entre os usuários mais relevantes e as hashtags mais utilizadas.
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