Análise das imagens de #mariellepresente: memórias entre a dor e a esperança
15 de abril de 2018 • por Fabio Goveia
O assassinato da vereadora Marielle Franco na noite de 14 de março de 2018 no Rio de Janeiro mostrou uma das faces da brutalidade contra cidadãos que defendem uma cultura de paz. Não à toa o Brasil é o país onde mais se matam ativistas dos Direitos Humanos, segundo relatório da Anistia Internacional de 2017. Mas, ao contrário do que acontece com a maioria desse tipo de crime, a repercussão do caso da política carioca destruiu uma rede de silêncio que se forma sobre essas agressões.
Os compartilhamentos nas redes sociais lançaram a um nível de reconhecimento global uma personagem política que, mesmo tendo sido uma das mais votadas na capital carioca, não tinha espaço privilegiado na agenda midiática política local, nacional ou muito menos internacional. Quadro de um dos menores partidos do Brasil – Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) – Marielle Franco era mais reconhecida no círculo de ativistas em defesa dos direitos da população LGBT. Após seu assassinato, porém, sua imagem passou a ser associada imediatamente à luta de todas as minorias. E é essa imagem-ícone forjada como símbolo de todos que lutam por uma sociedade mais justa que vamos analisar nesse texto.
O estudo de cerca de 11 mil imagens que circularam a partir de compartilhamentos da rede social Twitter entre os dias 13 e 21 de março deixa evidente como a comoção e a dor de um crime “contra a democracia”, como alguns afirmaram, alçaram a vereadora carioca à categoria de ícone da luta em defesa dos direitos humanos. Para exemplificar, podemos realizar a análise da pulsão das imagens.
Em uma visualização que combina o volume de republicações, o tipo da imagem, a cor predominante e o ritmo de compartilhamento, podemos perceber como e quando as imagens ganham as redes sociais. Num primeiro momento (dia 13 e 14) há apenas relacionadas ao PSOL, com destaque para imagens do pré-candidato do partido, Guilherme Boulos, à presidência da República.
Figuras 1a e 1b: Prints da visualização tipo ‘Pulsão’ das imagens coletadas nos dias 13 e 14 de março de 2018 com hashtags associadas ao assassinato da vereadora Marielle Franco. Disponível em http://labic.net/mariellepresente |
É possível perceber o baixo volume de imagens e de interações, sendo essa observação corroborada pela visualização tipo ‘ImageJ’ (Figura 2). Nesse modo de analisar os dados, temos no eixo X o tempo em que as imagens foram publicadas pela primeira vez e no eixo Y a quantidade máxima de compartilhamentos dentro do período investigado. Inexiste, portanto, a imagem da vereadora como figura relevante no imaginário dos publicadores de mensagens, incluindo os próprios ativistas do PSOL.
Figura 2: Visualização tipo ‘ImageJ’ de mais de 11 mil imagens coletadas entre os dias 13 e 21 de março de 2018 com hashtags associadas ao assassinato da vereadora Marielle Franco. Eixo X: tempo; eixo Y: quantidade de compartilhamentos.
Detalhe 1: Recorte apenas das imagens que circularam nos dias 13 e 14.
Detalhe 2: Momento em que a viralidade toma conta das imagens.
O crime contra a vereadora, na noite de 14 de março, desencadeia uma reação de compartilhamentos muito intensa. Na mesma noite podemos perceber que as imagens mais viralizadas começam a circular. Entre elas estão imagens de perfis realizados por veículos de imprensa quando da sua eleição e também imagens de vídeos produzidos pela Mídia Ninja. O Detalhe 2 da figura 1 permite observar também a gigantesca quantidade de imagens com pouco compartilhamento, representadas pelas sobreposição de traços na parte inferior da visualização. Também as figuras 3a e 3b permitem enxergar o volume, a pluralidade e a intensidade das imagens que circularam nos dias 15 e 16 de março.
Figuras 3a 3b: Prints da visualização tipo ‘Pulsão’ das imagens coletadas nos dias 15 e 16 de março de 2018 com hashtags associadas ao assassinato da vereadora Marielle Franco. Disponível em http://labic.net/mariellepresente |
Nesse tipo de visualização representamos cada imagem com um círculo com a cor predominante da imagem. O tamanho da circunferência diz respeito à quantidade de republicações da imagem. Já a posição no eixo X está relacionada à escala cromática do conjunto das imagens, enquanto que a posição no eixo Y está definida em função da quantidade de compartilhamentos naquele período. A imagem A da figura 3a teve 1438 retweets, sendo uma imagem que ilustrou um perfil da vereadora feita pela fotógrafa Márcia Foletto, de O Globo.
Imagem A: 1438 RT | Imagem B: 1131 RT | Imagem C: 2181 RT | Imagem D: 3193 RT |
Na sequencia, a segunda imagem mais compartilhada é uma notícia veiculada no jornal carioca O Dia, que obteve 1131 compartilhamentos. Se no dia 15 as duas imagens mais distribuídas na rede social mostram um predomínio da mídia do Rio de Janeiro, no dia seguinte as duas imagens mais viralizadas são típicas das redes sociais e observa-se a expansão para o cenário nacional: a imagem C é um print de um usuário criticando as pessoas que acusam Marielle de “defender bandido” e a imagem D usa um meme já conhecido do herói de quadrinhos Homem-Aranha ironizando a investigação policial sobre o caso. No tweet do meme há o texto “Polícia investigando o assassinato da Marielle”, numa alusão ao possível envolvimento de policiais no crime. A imagem foi a mais compartilhada na semana. Somente no dia 17 de março ela foi republicada 6703 vezes, tendo somado ao fim do período mais de 12 mil republicações.
A segunda imagem mais compartilhada no dia 16 obteve 1129 retweets e mostra a uma imagem em preto e branco também de caráter jornalístico, sendo circulada em muitos veículos e também nas redes sociais. Essa imagem, na verdade, é uma das mais icônicas, uma vez que foi apropriada de forma generalizada, tendo sido republicada inúmeras vezes. É possível observar o alto índice de apropriação se observarmos a visualização ImageCloud por semelhança (Figuras 4a e 4b).
Figura 4a: Visualização tipo ‘ImageCloud’ por semelhança das imagens coletadas no período entre 13 e 21 de março de 2018 com hashtags associadas ao assassinato da vereadora Marielle Franco.
Também na visualização ImageCloud por cor (Figuras 5a e 5b) podemos perceber a replicação e apropriação da imagem.
Figura 5a: Visualização tipo ‘ImageCloud’ por cor das imagens coletadas no período entre 13 e 21 de março de 2018 com hashtags associadas ao assassinato da vereadora Marielle Franco.
Figura 5b: Detalhe ampliado do canto esquerdo superior.
Essa análise nos permite intuir que do dia 15 para o dia 16 o caso passa de repercussão local para nacional. E atrai, assim, parte dos comentários que detratam a imagem da vereadora. É nesse momento também que uma das imagens mais polêmicas surge no dataset. Trata-se de um print da desembargadora Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em sua conta no Facebook, em que acusava Marielle de estar “engajada com bandidos”. A juíza baseou sua crítica em notícias falsas (imagem E).
No mesmo período há viralização de uma imagem falsa em que uma mulher aparece sentada no colo de um homem em um lugar que parece ser um bar. A atribuição de que a mulher seria Marielle e o homem o traficante Marcinho VP faz com que seja desencadeada uma campanha para denunciar essa informação falsa. Podemos observar essa movimentação viral pela visualização tipo ‘ImageJ’ em função da cor e do tempo (Figura 6 e detalhes 1 e 2).
Figura 6: Visualização tipo ‘ImageJ’ ordenadas por cor (eixo Y) e tempo (eixo X) das imagens coletadas no período entre 13 e 21 de março de 2018 com hashtags associadas ao assassinato da vereadora Marielle Franco.
Detalhe 1: Ampliação permite observar as imagens com predonimância em azul que são um print de vídeo circulado pelo Movimento Brasil Livre e atribuído ao usuário @Paulo Martins10 .
Detalhe 2: Variações da imagem de um mulher sentada no colo de um homem compartilhada como se fossem a vereadora Marielle Franco e o traficante Marcinho VP.
Nesse recorte observamos a relação entre a difusão de notícias falsas sobre a vereadora assassinada e a empreitada para desmentir a onda de fake news. É possível estabelecer ainda uma relação temporal entre essas imagens, tendo pico de circulação a partir da noite de 16 de março e viralizando intensamente no dia 17.
Imagem F: Foto que provaria o namoro de Marielle Franco e Marcinho VP. | Imagem G: Print do vídeo de Paulo Eduardo Martins em que associa Marielle Franco a defesa de bandidos | Imagem H: Foto de Marielle com texto que a associa a defesa de criminosos | Imagem I: Imagem que desmente o suposto caso entre Marielle e Marcinho VP |
O último bloco de análise diz respeito à repercussão da homenagem feita à vereadora assassinada pela cantora Kate Parry, que parou o show no Rio de Janeiro em memória de Marielle Franco. O bloco de imagens mais escuro na parte direita da figura 6 evidencia a repercussão internacional que o crime alcançou. O evento musical tem 4 imagens entre as 20 mais compartilhadas no Twitter no período investigado, conforme pode ser observado na visualização tipo “ImageCloud” com as imagens ordenadas pelo número de compartilhamentos.
Figura 7: Visualização tipo ‘ImageCloud’ ordenadas pelo número de compartilhamentos das imagens coletadas no período entre 13 e 21 de março de 2018 no Twitter com hashtags associadas ao assassinato da vereadora Marielle Franco.
Por fim, as imagens contam uma narrativa de tragédia, dor, luto. Mas também de luta e de esperança. Em detrimento de uma campanha de criminalização da atividade política da vereadora Marielle Franco, a força das imagens positivas e de defesa de seu legado são indícios de que um ícone nasceu. O estudo das imagens mostra que a luta de Marielle foi vitoriosa na disputa de narrativas que ganham as redes sociais cotidianamente.
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